Cachorro quente ou hot dog?

Estava numa boate de Sampa, era 2001, novo milênio, tudo queria parecer futurista, essa boate chamava-se Disco, os mais afetados pronunciavam diz-cou, como se fala em inglês, e qualquer um que se considerava descolado e tivesse 500 reais para torrar em doses de bebida 10 vezes o valor normal, estava lá. Me convidaram, nome em lista na portaria, bebi  as custas de patrocinadores. Fiquei sentado a uma mesa enfeitadíssima de garrafas de Johnnie Walker, o que atraía muita gente bonita. Era impossível conversar, a música em altos volumes impedia qualquer linguagem além da corporal. Nunca me dei bem nestas festas onde as pessoas se beijam sem nem perguntarem seus nomes. Nada contra, beijar anônimos deve ser bom mesmo, tenho essa mania de conversar, de acreditar que a conversa é um ato civilizatório. Fiquei ali bebericando até que tive fome.

Em São Paulo é fácil engordar, dezenas de milhares de lugares com comida muito boa, tudo é bom, até o cachorro quente de carrocinha é demais. Tinha um na frente da Disco, quando a barriga falou mais alto imediatamente acendeu-se uma luz na minha memória fotográfica que me conduziu até uma destas carrocinhas. Era involuntário. Não acredito no poder de mandingas, vodoo e destas coisas de magia, mas para mim estes cachorros quentes eram encantados. O porteiro da boate disse que eu, uma vez saindo, não poderia mais voltar. Nada me afastaria daquela marcha em direção a carrocinha com o Hot Dog escrito em tinta vermelha sobre o inox reluzente. Era uma imagem hipnótica. Cheguei até ela, o atendente da carrocinha era argentino. Logo comecei a falar em espanhol, em 2 minutos de espanhol já estava conversando em inglês com o portenho. Ele falava com sotaque argentino carregado, eu não. Minha acentuação perfeita, padrões tonais treinadíssimos, confundiria até um agente do FBI sobre minha origem, se da Pensilvânia ou de Nova Jersey.

Nisto parou um carrão preto ao lado da carrocinha, desceram duas garotas lindas, uma mais clara de olhos verdes, italiana, a outra mais oriente médio, de olhos castanhos misteriosos, típicas paulistanas. Perfeitas damas, jovens, produzidas, de saltos altos e roupas indefectíveis, cabelos com alisamento japonês de 2 mil dólares. Pareciam modelos saídas de um anúncio de revista de moda. Eu continuei a conversar animado com o hermano sobre gastronomia, fórmulas do cachorro quente, tentando entender o que tem em São Paulo que faz o cachorro quente tão melhor do que o hot dog de New York, se o purê de batatas e o molho seriam o segredo. Fingi que nem tinha notado a presença das duas garotas no auge de sua beleza e imponência. Menos de 3 minutos e as lindinhas estavam conversando em inglês comigo, sorridentes, pediram educadamente para entrar na conversa, se esforçavam para falar em inglês intermediário, com muitas lacunas de vocabulário, ainda assim bem acima da média no Brasil.

Conversávamos animados sobre cachorro quente, elas também queriam saborear aquela iguaria da madrugada, mas iriam levar os lanches embora, já estavam me convidando para um after no flat delas na Vila Madalena, queriam saber o que eu gostava de beber. Tudo as mil maravilhas, finalmente tinha me dado bem naquela cidade onde os círculos de relacionamento são complicados. Estava feliz mesmo. Com um lindo cachorro quente nas mãos e me dando bem com duas beldades que evanesciam perfume francês. Neste momento saiu de dentro da Disco o meu amigo, que caminhou em passos largos até a carrocinha e gritou com os braços abertos: “Medinão, você está aqui!”. Foi como jogar um balde de água gelada sobre as duas garotas que falaram em côro, numa exclamação misto de nojo e decepção: – Você é brasileiro? Respondi num sim baixinho e culposo. Elas começaram a me xingar com toda vontade. “Seu idiota, você é um imbecil, nos enganou que era um gringo, vamos levar o seu amigo pro flat, mas você vai ficar aqui, seu trouxa, abobado, metido a besta!” A lista de adjetivos horrorosos não parava de ser declamado pelas duas. Eu ainda tentei argumentar que elas não tinham perguntado de onde eu era, não tinham perguntado meu nome, que eu estava conversando com o argentino e elas entraram na conversa. Nada do que dissesse iria contornar a decepção de eu não ser um estrangeiro e a sensação delas de terem sido iludidas. O humor das duas foi da gentileza alegre para o agressivo compulsivo como se tivessem tomado a poção do Dr. Jekyll e virado duas criaturas monstruosas vociferando ameaças mortais. Meu amigo sem entender muito do que tinha acontecido, ria de nervoso, tentou argumentar que eu era “gente boa”, que tinha morado muito tempo fora do Brasil. De nada adiantou. Logo os xingamentos das garotas já tinham atraído mais gente, olhares de reprovação, braços cruzados, testas franzidas, já surgiu um valentão de punhos cerrados querendo me soquear, vieram os seguranças da boate conferir a confusão. Muito rápido meu amigo me pegou forte pelo braço, o erguendo como seu eu fosse um marginal bêbado sendo inconveniente, me explicando em voz de comando que eu não poderia fazer uma grosseria destas, enganar as pessoas, fazer de bobas aquelas jovens mulheres. Me arrastou para fora da cena em segundos. Depois explicou que fez aquilo para me salvar de um linchamento que já estava se armando.

Sempre acreditei no diálogo como a melhor forma de superar diferenças, produzir conhecimento, encontrar soluções e até o amor de sua vida. Mesmo assim o diálogo pra funcionar tem que ser sempre de igual para igual. Nesta noite aprendi ainda que se uma mulher sentir-se ludibriada isto é fatal para a relação ou tentativa de relação, ou cantada, ou o que for. Não ludibriei intencionalmente, mas não faz muita diferença se foi intencional ou se aproveitei uma circunstância. Não ludibriar é muito mais elegante, faz bem para o coração e você pode se livrar de gente chata e perigosa em menos tempo.  Como parte desta reflexão naquela noite voltei pra casa com o estômago embrulhado e tive um pesadelo horrível, destes que acometem a gente quando comemos coisas pesadas e gordurosas antes de dormir.

Sobre Luciano Medina Martins

Journalist, blogger, activist against the abuses of states that violate citizens' rights. I don't write about one only topic, I like to interact with many different issues. No fake news here.
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8 respostas a Cachorro quente ou hot dog?

  1. Rosane Fagundes diz:

    Guri bom este Medina🤜🤛

  2. JEAN MARCEL RUSZKOWSKI diz:

    Muito bom!!!! Tu é o cara Medinão kkkkkk

  3. NEUSA PANDOLFO diz:

    Medina querido. Amei a sua crônica. Você escreve muito bem. Parabéns!!

  4. Ricardo diz:

    Muito bom !
    Rindo muito!

  5. Rosane Paiani diz:

    Adorei! Ri alto aqui imaginando a cara das “minas” qdo descobriram q o “gringo” era brazuca!

  6. smarques diz:

    KKK muito boa história!! é a tua cara, bem escrita e humorada! Parabéns!!!!

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